Aécio Neves – Pronunciamento na sessão em homenagem a Mário Covas

Peço licença a todos para começar esta homenagem cometendo uma confidência:

Nos anos que governei Minas Gerais, por dois mandatos, tive à minha mesa, na biblioteca do Palácio das Mangabeiras, uma antiga foto com o governador Mário Covas.

Lembro-me que o registro sempre chamou a atenção das pessoas.

Não porque estranhassem o abraço fraterno entre dois companheiros de jornada.

Mas porque o colocava, com aquele sorriso largo e generoso, em um importante espaço guardado carinhosamente para familiares queridos…

Posso dizer que Covas frequentou, todos esses anos, minha intimidade no dia a dia, bem ao lado do meu avô Tancredo, como inspiração permanente, não apenas a um modesto governador, mas ao homem público e às suas convicções.

Em muitos momentos aflitivos, no processo de governança em Minas, recorri a eles.

Imaginava o que fariam se tivessem pela frente problemas grandiosos como os que enfrentamos, especialmente no começo do mandato.

Olhava aquelas fotografias já amareladas pelo tempo, e garanto-lhes: jamais me frustrei.

Quase sempre encontrava – na história viva de cada um – respostas seguras para as decisões difíceis que precisava tomar.

Acredito que, assim como Tancredo, os exemplos de Covas continuam a influenciar a formação de novos políticos e administradores Brasil afora…

Cada um a seu tempo, foram homens admiráveis.

Covas

Covas foi um dos mais importantes artífices do projeto da social- democracia no Brasil e, passo seguinte, da formação do nosso partido.

Incomodava-se, entre os históricos do PMDB, com as contradições de militar em uma frente tão ampla, heterogênea e tantas vezes contraditória, e não em uma legenda capaz de posicionar-se firmemente frente aos desafios nacionais e defender um programa.

Lembro-me bem do seu entusiasmo com o novo partido, no turbilhão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, chão fértil onde foram plantadas as primeiras sementes e os primeiros valores do PSDB.

Um partido tem que ter posição, dizia ele.

Não pode ser condescendente com a corrupção, advertia.

Tem que ter propostas e responsabilidade ao fazê-las, ou corre o risco de pregar ao vento, no vazio, alertava.

Sonhava com um partido que refletisse na sua postura a indignação da população cansada da corrupção e da incompetência do estado nacional.

Sua presença entre nós foi sempre estimuladora, quando não crítica dos nossos próprios passos coletivos e sobre a direção que tomávamos.

“Sou um subversivo dentro do meu partido, proclamava, de peito aberto. Tento ser uma pessoa que contribui. Se não concordo com o presidente da República, eu digo. Até porque acho que a tarefa é essa. O partido não é um grupo de autômatos, que obedecem.”

Ele acreditava profundamente no debate das ideias e no contraditório, como exercício para buscar as melhores saídas e soluções para os problemas e os impasses.

Debatia com profundidade e à exaustão, com o calor próprio das palavras.

Como político, Covas participou de todas as mais importantes articulações do Brasil contemporâneo.

Ficou marcada na nossa história, por exemplo, a rejeição, pelo Congresso, da licença para processar o então deputado Márcio Moreira Alves, que fizera um discurso considerado ofensivo pelas Forças Armadas, em 1968.

A licença para processar Moreira Alves foi negada, mas a reação do regime foi violentíssima: o Ato Institucional número 5, um dos mais poderosos instrumentos de arbítrio que o país conheceu, que fechou o Congresso e cassou mandatos.

Covas foi um dos parlamentares cassados, no dia 16 de janeiro de 1969, um mês e três dias depois de editado o AI-5.

Ficou uma década no ostracismo, com os direitos políticos suspensos até o retorno, em 79.

Lutou pela redemocratização plena, e desse patamar habilitou-se a voltar às ruas, em 89, como candidato à Presidência, após 20 longos anos de abstinência, na primeira grande campanha presidencial da redemocratização brasileira.

Não foi eleito, mas fez uma campanha memorável.

Clara.

Aberta.

Limpa.

Entusiasmada.

Densa em questionamentos.

Rica em propostas inovadoras e corajosas.

Ousou propor um projeto de país, como passo seguinte à grande reforma constitucional levada à cabo pela Constituinte de 88.

Acredito que esse sopro inicial, com a força de sua marca, com sua coragem, com sua inteligência, com o seu patriotismo, foi fundamental para dar corpo e alma à causa da social democracia brasileira, e nos tornar um dos mais importantes partidos da história do País.

As propostas assinadas por Covas, naquele tempo, são ainda incrivelmente atuais, em sua grande maioria.

Daqui mesmo, desta tribuna do Senado Federal, posicionou-se nos instantes iniciais de sua candidatura, pregando a necessidade de venceremos problemas estruturais que nos aprisionava irremediavelmente no subdesenvolvimento.

Para ele, os potenciais do Brasil real eram contraditórios com a imobilidade e o desânimo que nos cercavam.

“Temos – dizia ele – um dos maiores parques industriais do mundo; uma infraestrutura econômica considerável; tecnologia de ponta; uma agricultura em rápida expansão, rasgando novas fronteiras; terras abundantes e grandes reservas minerais. Temos uma força de trabalho imensa e competente, um empresariado dinâmico e ousado.

O País é forte, mas vem sendo agredido duplamente:

De um lado, por crescente degradação da infraestrutura, causada pelo esgotamento da capacidade de investimento do Estado. E, de outro, pela escalada da inflação, que desorganiza a economia, concentra sempre mais a renda, premia a especulação, deprime os salários reais e a receita pública”.

E alertava:

No mundo contemporâneo, que avança por grandes saltos tecnológicos e organizacionais, cada década representa um século a ser ganho ou a ser perdido.

Na sua visão, estava nas mãos desta geração promover esse salto. Ou o faremos logo, alertava ele, ou retrocederemos irremediavelmente. Proponho ganharmos juntos, na próxima década, um século de prosperidade, com justiça social.

Ele sabia que, para isso, era preciso ter claro o rumo e nos permitirmos segui-lo coletivamente.

Covas nos ensinou, com a sua trajetória, que governar é exercer a autoridade sem autoritarismo, com base na legitimidade conferida pelo voto popular, com a credibilidade dos que conhecem o valor da palavra pública e o sagrado compromisso que ela envolve.

Ele confiava no País e em nossa capacidade de decisão.

Ser nacionalista, para ele, era defender uma autêntica e legítima política nacional de desenvolvimento.

Propunha reformas – praticamente as mesmas de hoje – para tirar o Brasil das crises cíclicas, reformulando as funções e o papel do Estado.

Dizia:

Basta de gastar sem ter dinheiro.

Basta de tanto subsídio, de tantos incentivos, de tantos privilégios sem justificativas ou utilidade comprovadas.

Basta de empreguismo. Basta de cartórios. Basta de tanta proteção à atividade econômica já amadurecida.

O Brasil não precisa apenas de um choque fiscal.

Precisa, principalmente de um choque de capitalismo, um choque de livre iniciativa, sujeita a riscos e não apenas a prêmios.

E Nada mais atual.

Já naquele tempo, Mário Covas alertava para a necessidade de profissionalização do serviço público e da direção das estatais, com o estabelecimento de rigoroso código de conduta.

E insistia de forma obsessiva na defesa permanente da educação.

Não podemos permitir – nos dizia – que o futuro seja a grande vítima do presente. E desse patamar defendia a mobilização do Estado para realizar finalmente a revolução educacional que o Brasil necessitava.

No olhar de Covas, os gastos com o ensino não podiam ser considerados ‘custeio’, mas investimento e investimento vital para o crescimento econômico como qualquer outro investimento produtivo.

Covas tinha um aguçado senso federalista e republicano. Para ele, um Governo moderno exigia a descentralização da administração, distribuindo melhor as responsabilidades, ao lado de mais recursos, aos Estados e Municípios. E que se apoiasse nas formas institucionalizadas de participação popular.

Considerava um escárnio, um escândalo, a enorme concentração de renda existente no país e apontava o seu mais alto custo: que a democracia não fosse, ainda, entre nós, um valor consensual e intocável da sociedade.

Covas temia que os indicadores sociais negativos e as perdas de poder real de compra dos salários permitissem outros retrocessos, como, por exemplo, o fantasma dos demagogos e dos ditadores do autoritarismo.

Na sua visão, não existia economia moderna capaz de competir, internacionalmente, sem um mercado interno também forte, sem consumidores plenos e sem um povo educado, reivindicante e capaz de ser, ele, o fator primordial do progresso tecnológico.

Desigualdade – na visão de Covas – não se corrige com estagnação. Corrige-se redistribuindo a renda e crescendo ao mesmo tempo.

Como administrador, tinha a visão própria do engenheiro que era. Citava, de memória, uma infinidade de números relativos às ações do seu governo.

Mas o político revelava-se em plenitude na capacidade de antever fatos por puro instinto.

No Brasil do nosso tempo, foi um governante corajoso e exemplar.

Adotou medidas duras para ajustar as contas públicas de São Paulo, que lhe causaram momentos de forte impopularidade, mas jamais recuou na sua obstinada decisão de fazer o que era preciso ser feito.

Covas sempre provocou incômodos nos setores conservadores, que o viam como perigoso estatizante e nacionalista.

Era temido e ao mesmo tempo admirado.

Perdeu e ganhou eleições.

Reeleito governador, logo no seu discurso de posse, anunciou em alto e em bom som: “Não me venham falar em adversidade. A vida me ensinou que, diante dela, só há três atitudes possíveis: enfrentar, combater e vencer.”

Só foi definitivamente derrotado pela doença.

Ao receber um aparte do senador Jarbas Passarinho, naquele memorável discurso no Senado a que me referia anteriormente, o Covas democrata definiu de forma brilhante o tratamento que deveria prevalecer nas relações políticas.

Disse ele: “sei que existem outras verdades e que elas são tão sustentáveis quanto às minhas e que a única razão pela qual um homem, um democrata, passa a ter o direito de defender a sua verdade é exatamente o respeito que ele manifesta pela verdade alheia. Por isso, meu primeiro compromisso com a verdade começa por reconhecer a dimensão e a prerrogativa da verdade alheia”.

Covas não gostava de fazer proselitismo com a questão da ética na política, que para ele era princípio natural à atividade pública.

Nessa matéria, ele dizia, o ideal é nem precisar defender: ética, deve revelar-se na conduta de cada um, sem maiores questionamentos.

Questionamentos que, aliás, ele jamais sofrera e por isso se orgulhava.

A este respeito é dele a frase mais definitiva:

“Asseguro, sem vacilação, que é possível conciliar política e ética, política e honra, política e mudança”.

Permitam-me, antes de encerrar, Srªs e Srs. Parlamentares, de relembrar um momento da minha relação com Mário Covas absolutamente marcante na minha vida pessoal, mas também na minha trajetória política.

Fui lançado candidato à Presidência da Câmara dos Deputados no final do ano de 2000, uma candidatura que para muitos era uma aventura mas acabou sendo o momento de afirmação do PSDB e das suas propostas na nossa Casa irmã.

Naquele momento, uma candidatura que nascia nas bases do Partido enfrentava – e era natural ainda – alguns questionamentos de lideranças que a consideravam um risco à aliança existente com os nossos parceiros.

Saúdo a presença e a chegada do Presidente José Sarney.

A minha candidatura corria o risco de não se sustentar. Lembro que fui a São Paulo. Covas, já sofrendo os primeiros reflexos da dura doença que acabou por abatê-lo, recebeu-me no seu gabinete, perguntou quais as reais condições dessa minha candidatura, que ainda é questionada por algumas lideranças importantes do meu Partido – isso foi numa terça-feira e não me esquecerei jamais dessa data –, e disse: “Aguarde-me quarta-feira em Brasília.”

O Líder José Aníbal vai se lembrar disso, ele que sempre foi o grande apoiador desse projeto. Ele chegou à nossa liderança, ainda tímida liderança, a mesma que ocupamos na Câmara dos Deputados. A imprensa aguardava-o naquele instante, vários deputados estavam lá para recebê-lo. Ele talvez não tenha ficado, Governador Geraldo Alckimin, 30 minutos em Brasília nesse dia.

Ele chegou à nossa liderança e, questionado por alguns jornalistas sobre como caminharia a candidatura de Aécio Neves à Presidência da Câmara dos Deputados, simplesmente disse: “Somos o maior bloco, por isso temos direito regimental de concorrer à Presidência da Casa. E chega de o PSDB ceder sempre. O nosso candidato é Aécio e vamos ganhar as eleições”. Virou as costas, voltou para o aeroporto, retornou para São Paulo.

Os questionamentos acabaram, a nossa campanha foi vitoriosa e busquei, naqueles dois anos, honrar, obviamente, a história e os preceitos do PSDB que nascia, mas, em especial, a confiança do Governador Mário Covas.

A onipresença de Mário Covas entre nós é uma salvaguarda aos ideais originais que fundaram o PSDB e que nos trouxeram até aqui, hoje.

A celebração de sua memória, mais do que uma justa e amorosa homenagem ao líder, ao estadista, ao homem público, ao companheiro leal e afetuoso, é também uma grande oportunidade, neste tempo em que, como partido, procuramos olhar para nós mesmos, e nos dispomos a realizar a tão necessária autocrítica sobre a trajetória desses últimos anos e as mudanças que nos exige o Brasil de hoje.

É hora de lembramos a epígrafe escrita no manifesto que fundou o Partido da Social Democracia Brasileira, como rumo a ser seguido, em direção ao futuro:

Porque só “Longe das benesses oficiais, mas perto do pulsar das ruas”, o PSDB poderá revitalizar-se, e tomar nas mãos o seu próprio destino.

Covas e seus múltiplos significados sinalizam esse destino.

Mais do que homenageá-lo por tudo que representa na nossa história, que possamos honrá-lo e dignificar o seu legado.

Muito obrigado.

Aécio Neves – Brasília – 29/03/2011

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