O Brasil que funciona

Às vésperas de mais uma campanha eleitoral, a imagem dos políticos não poderia ser pior. Associados a mordomias, bandalheiras, promessas vazias e governos ineptos, eles aparecem sempre em último lugar nas pesquisas que avaliam a confiança da população nas autoridades e instituições. Em junho de 2013, quando as multidões foram às ruas protestar contra “tudo isso que está aí”, esse sentimento de aversão aos políticos e aos partidos, aliado a uma insatisfação geral com a qualidade indecente dos serviços públicos, tornou-se ainda mais evidente. Felizmente, uma nova linhagem de políticos, mais voltada para a administração que para a politicagem, vem ganhando espaço. Ainda é um grupo pequeno, para as dimensões do Brasil. É composto, se tanto, de meia dúzia de governadores e meia centena de prefeitos, além de seus auxiliares diretos e um ou outro político de Brasília. Juntos, eles promovem uma transformação extraordinária, talvez a mais profunda de que se tem notícia no Brasil contemporâneo. “A definição das políticas é importante, mas não é suficiente”, diz Diana Farrell, líder do Centro para Governo McKinsey, com sede em Washington, nos Estados Unidos. “Muitos desafios têm mais a ver com um governo bom e eficaz na prestação de serviços à população.”

É justamente isso que esses novos governantes têm feito. Com o uso das ferramentas básicas da gestão empresarial, eles mostram que é possível governar com seriedade e transparência e promover o desenvolvimento sem maltratar o dinheiro dos contribuintes. Os resultados podem ser observados não apenas nas contas públicas – o ponto de partida para conquistas mais ambiciosas –, mas também na melhoria da qualidade de serviços essenciais, como educação, saúde, segurança e transporte. “Há uma nova geração de políticos que pensam como executivos e valorizam a gestão”, diz Vicente Falconi, especialista em gestão pública e consultor de governos interessados em ganhar eficiência. “Não tenho a menor dúvida de que o setor público tem condições de ser tão eficiente quanto a iniciativa privada.”

 

>> Em Salvador, um hospital público que parece privado

Com a implantação do novo modelo de gestão, já adotado em outros países, como Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Cingapura, uma linguagem antes restrita ao mundo dos negócios se populariza também na esfera estatal no país. Termos como planejamento estratégico, meritocracia, metas, monitoramento e avaliação de desempenho passaram a fazer parte do dia a dia de várias administrações. O pagamento de bônus por produtividade se tornou uma realidade. Em vez de políticas erráticas, para apagar um incêndio aqui e outro ali, alguns governantes agora levam em conta objetivos de longo prazo e seguem planos detalhados para alcançá-los. Também ganhou popularidade o repasse de vários serviços públicos ao setor privado, como a gestão de estradas, cadeias, estádios de futebol e até hospitais, por meio das parcerias público-privadas, as PPPs. “Para atender à demanda social, nem todo o PIB (Produto Interno Bruto, a soma de toda a riqueza produzida no país) seria suficiente. Então, é preciso aprender a gerenciar a escassez com mais eficiência”, afirma o empresário Jorge Gerdau Johannpeter, presidente do Conselho de Administração do grupo Gerdau e da Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade, ligada ao governo federal. Gerdau está envolvido com a melhoria de gestão pública desde o início dos anos 2000, quando fundou o Movimento Brasil Competitivo (MBC), para colaborar com iniciativas do gênero.

 

>> Jorge Gerdau: “O Brasil tem de mudar para não ficar para trás”

É verdade que o novo modelo não está imune a problemas. Mas os avanços são palpáveis. “Quando você olha o setor público como um todo, ainda há grandes territórios de caos”, afirma a advogada Flavia Pereira, sócia no Brasil da McKinsey, uma das principais empresas globais de consultoria, envolvida em projetos de gestão com vários governos. “Ao mesmo tempo, há experiências interessantes e inovadoras, ilhas de excelência que a gente usa como exemplo em outros lugares do mundo.”

Os exemplos inspiradores pipocam em todo o país. Até mesmo no governo federal, mais atrasado, há mudanças em andamento. Nos últimos três meses, ÉPOCA mergulhou no assunto e foi conhecer de perto alguns dos casos mais representativos da nova mentalidade que prospera no país. Ouviu políticos, empresários, sindicalistas, consultores do Brasil e do exterior e cidadãos comuns. No total, foram mais de 50 entrevistas, incluindo ministros, governadores, prefeitos e secretários estaduais e municipais. O resultado será apresentado numa série de reportagens e se estenderá pelas próximas semanas, com a publicação de casos que mostram como o novo modelo de gestão muda o dia a dia do cidadão. Escolhemos exemplos de diversos partidos, prova de que as boas práticas de gestão independem de coloração ideológica.

Agora, apresentamos em detalhes como o governo do petista Jaques Wagner, da Bahia, melhorou a qualidade do atendimento com a concessão de um hospital à iniciativa privada. Depois, mostraremos como Pernambuco reduziu o número de homicídios e latrocínios. “Como os resultados não vêm de um ano para o outro, tivemos de perseverar para ver o outro lado da margem”, diz o ex-governador pernambucano e pré-candidato à Presidência pelo PSB, Eduardo Campos. Em seguida, revelaremos o segredo de Minas Gerais para dar um salto na educação. “Não é tarefa para uma geração, é um processo, mas já começamos”, afirma o governador Antonio Anastasia, coordenador do programa do senador e pré-candidato do PSDB, Aécio Neves. No município do Rio de Janeiro, cujo prefeito é Eduardo Paes, do PMDB, o destaque será a adoção da meritocracia e da gestão de contas públicas. Na pequena cidade de Sarandi, no Rio Grande do Sul, administrada pelo PP, o foco serão as creches, abertas 12 meses por ano, que oferecem às crianças transporte gratuito com acompanhantes. No Ministério dos Transportes, comandado pelo baiano César Borges, do PR, o destaque será a gestão de projetos de infraestrutura. Outros casos darão sequência à série. “A gestão só faz sentido pleno quando entendida como instrumento de bem-estar social e não só como ferramenta para promover ajuste fiscal”, diz o economista Otaviano Canuto, assessor sênior do Banco Mundial. “No Brasil, ao longo da nossa história, temos tido muito governo e pouca administração”, diz Anastasia. “A alta condução dos negócios públicos tem de ter raízes ideológicas, mas a administração deve ser mais técnica e racional, para impulsionar as decisões políticas.”

A popularidade dos governantes que abraçaram o novo modelo de gestão desperta o interesse e o ciúme de adversários e até de aliados. Quem vê o sucesso do vizinho acaba querendo fazer igual. “Boa gestão dá voto. Aqueles que entregam o que prometem é que conseguem se reeleger hoje”, diz o cientista político Luiz Felipe d’Avila, presidente do Centro de Liderança Pública (CLP), que prepara líderes políticos para mudanças na gestão e melhorias nos serviços públicos. “O povo percebe quando o governante fez muito com poucos recursos”, afirma Falconi. “A mãe começa a ver a escola do filho melhorar, o hospital atender melhor, menos ladrão na rua. O povo percebe, como percebe o contrário também. Ninguém é besta.”

Falconi diz que, no primeiro mandato de Lula, foi convidado por Gerdau para acompanhá-lo numa viagem a Brasília, para encontrar o presidente na Granja do Torto. Estavam lá também os então ministros José Dirceu, da Casa Civil, Antonio Palocci, da Fazenda, e Luiz Furlan, do Desenvolvimento. A certa altura, segundo Falconi, Lula disse a Gerdau, com sua voz rouca: “Oh, Jorge, o que é esse negócio de gestão que você fala tanto?”. Depois das explicações de Gerdau, Furlan, ex-presidente do Conselho de Administração da Sadia, também falou. Ainda de acordo com Falconi, Furlan realçou o trabalho do consultor e sua capacidade de promover mudanças na gestão e de obter resultados. Não demorou muito para Lula dar seu veredito. “Entendi, professor, pode começar amanhã. Porque aqui é o seguinte: eu dou as ordens e não acontece nada”, afirmou Lula, segundo Falconi. “Esse negócio vai me ajudar a fazer as coisas acontecerem.” Seguindo a determinação de Lula, Falconi fez alguns trabalhos para o governo federal. Ao final do segundo mandato, em 2010, o problema de execução persistia.

Muitos políticos acreditam que a capacidade de execução depende essencialmente de dinheiro. Ao contrário. Mais dinheiro nem sempre é indispensável para obter bons resultados. Dá para fazer muita coisa gastando nada ou quase nada. Falconi dá como exemplo um caso ligado à área de segurança no Estado do Rio de Janeiro, para o qual trabalhou. Depois de pesquisar os dados da segurança no Estado, diz ele, foi possível detectar que o maior gargalo estava nas penitenciárias. Apesar de toda a ineficiência da polícia, havia 50 mil mandados de prisão (é isso mesmo!) na rua. Só que eles não eram executados, porque não havia para onde mandar os presos. Falconi e sua equipe decidiram, então, visitar as penitenciárias fluminenses e analisar os casos dos presos um a um, para tentar liberar vagas. Com o apoio do Judiciário, de acordo com Falconi, foi possível liberar 6 mil vagas, com a soltura de gente que já cumprira a pena ou estava envolvida em casos menores. Com a Secretaria de Segurança, sua equipe fez um “pente-fino” na lista dos mandados de prisão e selecionou os 6 mil piores casos, pela ordem. As ordens de prisão começaram, então, a ser cumpridas. “O Estado não precisou gastar nada”, diz Falconi. “Gestão é isso: poder tomar a decisão certa, em cima dos dados e dos fatos, usando o mínimo de recursos e tirando o máximo proveito deles.”

Em geral, a capacidade de execução ou de “entrega”, como dizem os consultores, fica comprometida, porque a máquina administrativa no Brasil está recheada de apadrinhados políticos em posições que deveriam ser essencialmente técnicas, ocupadas por funcionários de carreira. Só no governo federal há cerca de 25 mil cargos em comissão, que dependem de nomeação do Executivo. Calcula-se que, para a máquina ficar bem azeitada, o ideal seria cortar o número de cargos de confiança para no máximo 500. Abaixo do secretário-executivo de cada ministério, não haveria cargos em comissão, apenas técnicos de carreira.

 

>> Mauro Leos: “Terá de acontecer algo extremo para um rebaixamento do país”

Lula reclamou que suas ordens não iam adiante, mas pouco fez para cortar os cargos federais de confiança. Ao contrário, ele os ampliou. Preencheu cada vaga disponível com políticos da “base aliada”, companheiros do PT e até com gente com quem mantinha apenas relacionamento pessoal. Em muitos casos, os “comissionados”, como eles são chamados, não tinham – e não têm – nenhum conhecimento da área para a qual haviam sido indicados. Não é à toa que as ordens de Lula davam em nada – e é provável que isso explique também parte da inércia do governo Dilma. “Os países mais maturados conseguiram mexer nesse negócio. Muda o ministro, e ele leva só três ou quatro pessoas e não dezenas ou centenas de funcionários em cargos de confiança”, diz Gerdau. “Pode levar tempo para a gente chegar lá, porque isso exige rupturas culturais. Tem de ser de forma gradativa. Mas o Brasil já tem exemplos de profissionalização no setor público: o Banco do Brasil, o BNDES, o Itamaraty, o Exército, a Embrapa, o Banco Central. O modelo está aí. Por que ele não pode ser replicado?”

A mudança já começou em alguns Estados e municípios. Em Minas, Anastasia coordenou o choque de gestão no primeiro mandato de Aécio. No ano passado, já governador, ele anunciou um corte de 20% nos cargos comissionados, além da redução do número de secretarias (de 23 para 17) e de órgãos da administração indireta. Também em 2013, o governador Eduardo Campos enviou ao Legislativo um projeto que transforma 969 cargos comissionados, 27% do total, em postos destinados a servidores de carreira.

Ao mesmo tempo, os governantes que abraçaram a nova filosofia adotam a meritocracia, que premia os servidores de melhor desempenho. A política tradicional de remuneração parte da premissa de que todos têm igual desempenho. Em lugar disso, a nova política privilegia a remuneração variável e paga bônus por desempenho. No Rio, a prefeitura instituiu um “acordo de resultados”, que prevê o pagamento de até dois salários a mais por ano aos servidores, se o órgão a que forem ligados cumprir as metas firmadas com o prefeito Paes. Segundo a prefeitura carioca, 83% dos servidores estavam incluídos no programa em 2013. A capacitação e o treinamento do funcionalismo também têm crescido, para ampliar o potencial de entrega do setor público. “No final, quem é decisivo é o pessoal da linha de frente”, diz o britânico Ray Shostak, ex-diretor da Unidade de Gestão do Reino Unido, encarregada de monitorar a execução de mudanças nos serviços públicos, no mandato do ex-primeiro-ministro Gordon Brown. “Se quiser melhorar os resultados, você precisa criar um ambiente que capacite essas pessoas a ter as habilidades e a motivação necessárias e implementar a política certa em torno delas”, afirma.

 

>> Norman Gall: “O Brasil tem de cair na real”

Sem liderança, é difícil engajar a turma e convencê-la de que o negócio é para valer. “A questão-chave é o comprometimento da liderança com os objetivos, com as metas e até com a cobrança”, diz D’Avila, do CLP. “Muitas vezes, o prefeito ou o governador delega a cobrança e as coisas não saem. O sinal que passa é de que aquilo não é prioridade, mas meia prioridade.”

É claro que há dificuldades. Os novos modelos de gestão contrariam interesses há muito sedimentados no setor público. Muitos sindicatos não aceitam a meritocracia, nem o sistema de gestão por resultados. Defendem a manutenção da isonomia salarial, que beneficia os mais improdutivos. Há greves, sabotagens, brigas políticas. Em Minas, o governo enfrentou uma greve de professores que durou 112 dias, quando alterou a política de remuneração dos servidores e introduziu a avaliação de desempenho em 2011. No Rio, não foi diferente. “É uma briga dura”, afirma D’Avila. “Não há vitória na gestão se a gente não pensar em mortos e feridos na frente política.”

 

>> Mia Couto: “O Brasil nos enganou”

Com as eleições, um fantasma começa a assombrar os governantes que adotaram o novo modelo de gestão – a descontinuidade administrativa. Como costuma acontecer no Brasil, quem ganha a eleição, principalmente se for de partido diferente, interrompe os projetos da gestão anterior e os substitui por outros que levem sua marca. Embora muitas mudanças adotadas nos últimos anos sejam positivas, na maioria dos casos basta uma canetada para que tudo vire história. “No Brasil, a descontinuidade das boas políticas públicas custa mais que qualquer escândalo de corrupção”, diz D’Avila. “É o maior desastre, porque você perde o aprendizado, o acúmulo de erros e acertos, joga fora um conhecimento importante, em vez de aprimorar, mudar coisas pontuais.”

Com tantas experiências inspiradoras Brasil afora, é desolador que elas possam se perder. Num país em que grande parte dos governantes está mais preocupada em nomear seus correligionários para se aproveitar do Estado, é sintomático que quem faça algo que preste muitas vezes não tenha proteção para sua obra. Fica a esperança – e a torcida – de que os novos governantes mantenham de pé o Brasil que funciona.

 

Leia também aqui.

 

Share on FacebookTweet about this on TwitterShare on Google+