O PT não é um partido muito tolerante já a partir de seus próprios pressupostos originais e de seu nome: quem se pretende um partido “dos” trabalhadores, não “de” trabalhadores, já ambiciona de saída a condição de monopolista de um setor da sociedade. Mais ainda: reivindica o poder de determinar quem pertence, ou não, a essa categoria em particular. Assim, um operário que não vota no PT, por exemplo, não estará, pois, entre “os” trabalhadores; do mesmo modo, o partido tem conferido a “carteirinha” de operário padrão a pessoas que jamais ganharam o sustento com o fruto do próprio trabalho.
A fórmula petista é conhecida: a máquina partidária suja ou lava reputações a depender de suas necessidades objetivas. Os chamados bandidos de ontem podem ser convertidos à condição de heróis e um herói do passado pode passar a ser tratado como bandido. A única condição para ganhar a bênção é estabelecer com o ente partidário uma relação de subordinação. A partir daí não há limites. Foi assim que o PT promoveu o casamento perverso do patrimonialismo “aggiornado”, traduzido pela elite sindical, com o patrimonialismo tradicional, de velha extração.
Afirmei no final de 2003 o que nem todos compreenderam bem, que o petismo era o “bolchevismo sem utopia”. Aproxima-se do bolchevismo nos métodos, no propósito de tentar se estabelecer, se possível, como partido único; nas instâncias decisórias aproxima-se do chamado “centralismo democrático”, que nada mais é do que a ditadura da direção central do partido. É bolchevista também na certeza de que determinadas ações até podem ser ruins para o Brasil, mas serão implementadas se parecerem boas para o partido. Como se considera que é ele que conduz a História do Brasil, não contrário, tem-se por certo que o que é bom para o partido será, no longo prazo, bom para o País e para o povo. Nesse sentido particular os petistas ainda são bastante leninistas.
Quando afirmei que lhes faltava a dimensão utópica, não estava emprestando um valor necessariamente positivo a essa utopia. Na minha ação política miro a terra que há, não a Terra do Nunca. E nela procuro sempre ampliar aquilo que é percebido como os limites do possível. De todo modo, é inegável que o bolchevismo tinha um devir, uma prefiguração, um sonho de um outro amanhã, ainda que isso tenha desembocado na tragédia e no horror stalinista. Mas isso não muda a crença genuína de muitos que se entregaram àquela luta. Isso o PT não tem. E chega a ser piada afirmar que o partido, de alguma maneira e em alguma dimensão, no que concerne à economia é socialista ou mesmo de esquerda. Muitas correntes de esquerda são autoritárias, mas convém não confundir o autoritarismo petista com socialismo. O socialismo tem sido só a fachada que o PT utiliza para lavar o seu autoritarismo – associado, infelizmente, a uma grande inépcia para governar, de que tenho tratado sempre nesta página.
Quero chamar a atenção é para o recrudescimento da face intolerante do partido. Como também já abordei aqui, vivemos o fim de um ciclo, que faz cruzar, episodicamente, a História do Brasil e a do PT. As circunstâncias que permitiram ao petismo sustentar o modelo que aí está – que nunca foi “de desenvolvimento”, mas de administração oportunista de fatores que não eram de sua escolha – se esgotaram. Na, infelizmente, longa agonia desse fim de ciclo temos a economia semiestagnada, os baixos investimentos e a desindustrialização, os déficits do balanço de pagamentos em alta e a inflação reprimida. E, nota-se, o partido nada tem a oferecer a não ser a pregação terrorista de que qualquer mudança implicará desgraça nacional.
Não tendo mais auroras a oferecer, não sabendo por que governa nem por que pretende governar o País por mais quatro anos, e percebendo que amplos setores da sociedade desconfiam dessa eterna e falsa luta do “nós” contra “eles”, o petismo começa a adentrar terrenos perigosos. Se a prática não chega a ameaçar a democracia – tomara que não! –, é certo que gera turbulências na trajetória do País. No apagar das luzes deste mandato, a presidente Dilma Rousseff decide regulamentar, por decreto – quando poderia fazê-lo por projeto de lei –, os “conselhos populares”. Não por acaso, bane o Congresso do debate, verticalizando essa participação, num claro mecanismo de substituição da democracia representativa pela democracia direta. Na Constituição elas são complementares, não excludentes. Por incrível que pareça – mas sempre afinado com o bolchevismo sem utopia –, o modelo previsto no Decreto 8.243 procura substituir a democracia dos milhões pela democracia dos poucos milhares – quase sempre atrelados ao partido. É como se o PT pretendesse tomar o lugar da sociedade.
Ainda mais detestável: o partido não se inibe de criar uma lista negra de jornalistas – na primeira fornada estão Arnaldo Jabor, Augusto Nunes, Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi, Guilherme Fiuza, Danilo Gentili, Marcelo Madureira, Demétrio Magnoli e Lobão –, satanizando-os e, evidentemente, expondo-os a riscos. É desnecessário dizer que tenho diferenças, às vezes severas, com vários deles. Isso é parte do jogo. É evidente que o regime democrático não comporta listas negras, sejam feitas pelo Estado, por partidos ou por entidades. Mormente porque, por mais que se possa discordar do ponto de vista de cada um, em que momento eles ameaçaram a democracia? Igualmente falsa – porque há evidência dos fatos – é que sejam tucanos ou “de oposição”. Não são. Mas, e se fossem? Num país livre não se faz esse tipo de questionamento.
Acuado pelos fatos, com receio de perder a eleição, sem oferecer uma resposta para os graves desafios postos no presente e inexoravelmente contratados para o futuro, o PT resolveu acionar a tecla da intolerância para tentar resolver tudo no grito. Cumpre aos defensores da democracia contrariar essa prática e essa perspectiva. Não foi assim que construímos um regime de liberdades públicas no Brasil. O PT está perdendo o eixo e tende a voltar à sua própria natureza.
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