Começo esta minha modesta homenagem ao nosso inesquecível ex-presidente por uma confissão: poucas vezes senti tanto a perda de um companheiro de caminhada.
E talvez tenha sido assim, porque, para mim, Itamar sempre fora algo mais que apenas um companheiro. Emprestou-me, no curso do tempo, generosa amizade e intensa solidariedade. Estivemos juntos no enfrentamos grandes dificuldades políticas circunstanciais, mas também – e principalmente – pessoais.
Não posso deixar de me emocionar lembrando a sua solidariedade, quando da perda de meu pai, seu amigo fraterno, ocorrida também há muito pouco tempo.
O sentimento que me reconforta hoje é o de que tive o privilégio de dele receber o melhor. Os conselhos, os exemplos, e as convicções acerca de valores essenciais que devem colocar de pé e sustentar qualquer homem público. E poucos tiveram essa dimensão quanto ele.
Itamar nasceu para servir a seu povo e serviu, enquanto viveu. Serviu ainda nos bancos acadêmicos, atuando na política estudantil, na qual optou pela esquerda moderada do trabalhismo de Alberto Pasqualini.
A figura pública do Presidente Itamar Franco entrou na vida da minha geração pela porta das eleições legislativas de 1974 – inesquecível oportunidade em que os brasileiros impuseram ao regime militar, na disputa para o Senado, uma de suas mais vistosas e decisivas derrotas políticas.
Protagonista de uma das mais brilhantes gerações de homens públicos brasileiros, aqui veio para ser líder, numa bancada em que, pela oposição democrática, pontificavam nomes como os de Marcos Freire, Paulo Brossard e, pouco depois, Teotônio Vilela, no Senado; Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Alencar Furtado, na Câmara.
Ainda recém-chegado a Brasília, Itamar rapidamente se transformaria numa das mais respeitadas vozes que, do bastião civilista de Minas, clamavam pela redemocratização do País. E, nesse aspecto, seu histórico é impecável: jamais faltou ao dever de fiel representação da vontade popular.
Decidiu em favor de todas as causas justas, libertárias e populares, durante o processo da Assembléia Nacional Constituinte.
Jamais alguém ouviu falar que Itamar tivesse, no decurso de sua longa carreira política, abandonado uma só de suas crenças. Ele que era para sempre compromissado com o respeito à liberdade, com a luta pela justiça social, com a defesa do processo de desenvolvimento do Brasil e com o primado da honestidade no trato da coisa pública.
E foi precisamente sagrado por essas armas que ele, colhido pelas forças irracionais do destino, escreveu de improviso a hora talvez mais bela e importante de toda sua biografia.
Alçado à Presidência da República, na esteira da crise política de 1992, ele se mostrou por inteiro. Foi nessa precisa hora, senhor presidente, que Itamar pôde mostrar, a si mesmo e a todos os brasileiros, que a grandeza se revela na adversidade e que o verdadeiro valor se prova somente ante o desafio.
E, no mais curto mandato presidencial após o Golpe de 1964 – apenas dois anos e três dias –, construiu um legado político e administrativo definitivo, que até hoje contribui com o destino do Brasil.
Foi obra sua a construção de uma coalizão parlamentar que soube pacificar a vida política e consolidar o processo de amadurecimento democrático – institucional, entre nós.
Foi obra sua, principalmente, a decisão de materializar – sob a competente condução de seu sucessor, o presidente Fernando Henrique– uma corajosa proposta de estabilização da moeda brasileira, o Plano Real.
E esse foi, de fato, um evento singular na história recente do País: o momento em que foram lançadas bases para que o processo de desenvolvimento econômico pudesse, doravante, combinar-se sempre com as premissas básicas do progresso social. Desse dia em diante, nunca mais o Brasil seria o mesmo.
A cultura política brasileira ainda não valorizou suficientemente o legado do presidente Itamar Franco, tanto na área política, quanto na prática administrativa. Não fosse isso, é certo que entenderíamos melhor o modo adequado de combinar a honestidade intransigente com as exigências concretas da governabilidade.
A maneira correta de exercer o zelo nacionalista, sem dar espaços à xenofobia rançosa. O segredo de lançar um olhar confiante mais para o futuro, sem perder de vista os aspectos positivos da tradição e das ricas lições da nossa história política.
Esse dia, entretanto, chegará para todo o Brasil, como já chegou para Minas, que soube honrar Itamar ao conduzi-lo, nos anos subsequentes, ao cargo de governador do Estado e, mais recentemente, ao Senado da República – reconhecendo assim o seu imenso valor pessoal, e assim reverenciando a sua honrada biografia.
Para mim, foi uma honra e um privilégio sucedê-lo à frente do Executivo mineiro, dele obtendo, inclusive, incondicional apoio naquela eleição.
Dele recebi, naquele momento, principalmente, a compreensão e solidariedade necessárias para que juntos fizéssemos o Choque de Gestão e então vencêssemos a gravíssima crise financeira do Estado, agravada pela conjuntura econômica adversa daquela hora.
Itamar Franco ansiava sempre pelas grandes causas, e as buscava. Não aceitava a bonança, convocava a tempestade do debate, a construção de ideias, a clareza da análise dos problemas econômicos e políticos, chamava pelo patriotismo, bradava pela responsabilidade do Parlamento, nesta época de grandes desafios.
Lembro-me de que Tancredo se impressionara com a imagem que André Malraux fizera da morte de De Gaulle: a de um grande carvalho que se abate. Nós podemos dizer que a morte de Itamar é como a queda de um grande jequitibá, árvore soberana da Mata Mineira, a que pertence Juiz de Fora. É árvore que não se curva sob o vento. E raramente se quebra.
Assim caiu Itamar, com a sua visão honrada da política e do tempo, com a renascida disposição para a luta, como se, do alto do Caparaó, olhasse o Brasil e o mundo com os olhos limpos de Minas, com a inteligência de Minas, a coragem e o coração de Minas.
Registro, por último, o quanto foi inspirador acompanhar, nestes poucos meses de convivência neste Plenário, a energia, a garra e, como lhe era natural, a serena integridade com as quais Itamar Franco exerceu sua última função pública. Nestes tempos em que – por razões, quero crer, contingenciais – vem se tornando cada vez mais pesado o exercício da oposição parlamentar, mais importante se torna sua referência biográfica para a criação de alternativas concretas de aperfeiçoamento da convivência democrática, no Brasil.
Possa, então, o seu espírito – já entronizado no Panteão das grandes figuras que Minas doou à Nação, na companhia de tantos outros gigantes – inspirar as atuais e as novas gerações de brasileiros.
Que o Brasil do nosso tempo não se esqueça das virtudes, dos valores e lições que Itamar nos legou. Nesta quadra da nossa história, elas, mais do que nunca, nos são absolutamente essenciais.
E termino essas minhas palavras, recordando de um trecho final de um artigo que escrevi poucos dias após o falecimento do nosso presidente. Dizia:
Nesses dias tristes, e gostaria que isso ficasse registrado nos anais da sua Casa, no Senado da República, quase tudo se disse sobre o ex-presidente. Lembramos a sua personalidade única, a retidão do caráter, a coragem política, a sua integridade e a sua intransigência quanto aos valores éticos e morais, e o papel central que desempenhou à frente da Presidência da República.
Tudo isso é verdadeiro. Mas a verdade não se resume a isso. Precisamos reconhecer a legitimidade da mágoa que Itamar carregou consigo durante muito tempo, fruto das incompreensões e da falta de reconhecimento à sua real contribuição ao país.
Se há no Brasil quem diga que, depois de morto, todo mundo vira santo, acredito que os elogios com que Itamar foi coberto após a sua morte não tinham a intenção de absolvê-lo ou, muito menos, de santificá-lo aos olhos da opinião pública, mas sim de nos redimir dos pecados da ingratidão e da injustiça com que tantos de nós o tratamos, durante tanto tempo.
Nesse sentido, os mineiros prestaram a Itamar, sem saber talvez que seria a última, uma belíssima homenagem. Ao conduzi-lo de volta ao Senado, retiraram-no do ostracismo, encheram de brilho e orgulho o seu olhar e permitiram que o Brasil se reencontrasse com o ex-presidente. Permitiram também ao grande brasileiro se reencontrar com o seu país e com seu povo.
Durante esses poucos meses, ele caminhou com altivez sobre o chão do Parlamento, o qual considerava sagrado. Seus passos foram guiados pelo sentimento de urgência que move aqueles que, verdadeiramente compreendidos com o país, sabem que os homens podem, às vezes, esperar. Mas a pátria, jamais. Sua presença iluminou o Senado e ele nos deixou fazendo o que mais gostava: lutando pelo Brasil.
A obra de todos e de cada um é sempre inconclusa. De tudo que vou guardar comigo, levarei sempre a lembrança do sentido preciso que ele tinha da nossa transitoriedade.
E naqueles dias, voltou-me à memória trecho antigo que dizia:
“Dizem que o tempo passa. O tempo não passa. O tempo é margem. Nós passamos. Ele fica”.
Pena que alguns estejam passando por nós e seguindo em frente tão depressa, quando ainda seriam tão necessários.
Muito obrigado.
Aécio Neves – Brasília – 10/08/2011