Tancredo: o luto e a luta

Aécio Neves – Correio Braziliense e Estado de Minas – 21/04/2015

Há 30 anos, pouco depois das 10 horas da noite do dia 21 de abril, Tancredo fechava pela última vez os olhos e densa cortina de sombras descia sobre o Brasil. Assim como o nascimento, a morte é coisa simples, ocorre tantas vezes todos os dias, mas é sempre extraordinária. E aquela foi, sem dúvida, extraordinária.

Para mim, no começo dos meus 20 anos, quem morreu foi o meu avô, e eu chorei as lágrimas de quem perde uma pessoa cujo afeto lhe é essencial. Os avós e netos são espécie de ponte que nos reconcilia com o tempo. Naquele momento, eu ainda não tinha vivido o bastante para reconhecer a tragédia política que se abatia sobre a vida brasileira. Minha grande perda pessoal era muito pequena diante da perda imensa que sua morte representava.

Como homem, Tancredo esteve presente na maioria dos dramas que marcaram a política do país, desde os dias finais de Getúlio até o governo João Goulart e o longo inverno autoritário. Em todas as circunstâncias, sempre esteve no lado certo. Durante o regime militar, escolheu a resistência pacífica e democrática, junto com Ulysses e outros poucos companheiros porque sempre sonhou que à ditadura deveria suceder democracia sem adjetivos, não outras formas de autoritarismo.

Em 1982, os líderes da resistência democrática prepararam o golpe final ao regime, vencendo as principais eleições estaduais, com Tancredo em Minas, Franco Montoro, José Richa e Leonel Brizola. A partir daí, a política e as ruas deram-se as mãos, chegando às grandes manifestações de 1984 pelas eleições diretas para presidente. Não pela primeira vez e, infelizmente, talvez não pela última, a maioria parlamentar deu as costas ao sentimento nacional e derrotou a vontade popular.

Mas o momento seguinte demonstrou, com vigor, para que serve a boa política: homens de bem, como o grande Ulysses Guimaraes, impregnados de profundo amor e respeito pelo Brasil e pelos brasileiros, muitos já em idade avançada, teceram o caminho através do qual o país se reencontrou com a democracia. Em 15 de janeiro de 1985, o Brasil voltou às ruas: Tancredo foi eleito o primeiro presidente civil e de oposição depois de 20 anos de autoritarismo.

Na manhã de 15 de março, dia que teria sido o da posse, as janelas do país se abriam para o sol da nova manhã, enquanto a ironia do destino fez que Tancredo se encontrasse num quarto de hospital para onde havia sido levado na véspera. De todos os milhares de dias de sua vida, quis o destino que ele tombasse justamente naquele dia, não em nenhum outro, antes ou depois. Não lhe foram concedidas nem poucas horas a mais para que chegasse a termo a missão da sua vida.

Mas, se o destino não lhe permitia chegar ao fim da caminhada, da sua cama ele ainda conseguiu cumprir a missão de garantir as condições para que a transição democrática seguisse em frente. A morte não veio de repente e o coração teimou em bater por vários dias garantindo a estabilidade da transição de poder. A longa agonia foi seu último presente ao Brasil.

Foi sepultado com Tancredo não apenas o corpo, mas também um país que poderia ter sido e não foi. Perdeu-se um modo de fazer política com o centro no interesse público, um padrão de integridade e uma coragem cívica que poucos hoje sabem o que significa. Por isso tenho que dizer que, infelizmente, o luto e a luta continuam. Luto pela política e pelo país. Luta para que sejamos capazes de honrar o sonho de tantos brasileiros, do passado e do presente, de um Brasil digno e justo.

Tancredo: trinta anos

Artigo do senador Aécio Neves – Jornal Estado de Minas – 18/01/2015

 

Nesses dias em que os brasileiros celebram as três décadas da eleição do primeiro presidente da República civil e de oposição após 20 anos de ditadura militar, uma diferenciação se impõe para entender melhor o importante papel que Tancredo Neves assumiu e desempenhou no processo de redemocratização do país: em tudo, ele era Minas.

Desde o começo – e especialmente nas horas mais difíceis – carregou e guardou consigo, a orientar suas decisões, as lições que apreendera com os seus e com aqueles que vieram antes dele e nos legaram um extenso conjunto de valores e princípios que tão bem caracteriza o homem público, na exata acepção da palavra.

Sua caminhada cívica, não por mera coincidência, sempre esteve lastreada pelo chão da história de Minas e foi da sacada do Palácio da Liberdade que ele corajosamente sinalizou a que vinha. Ficou para sempre marcado em nossa memória coletiva a sua inconfundível voz rouca e emblemática, carregada de civismo, proclamando que “o primeiro compromisso de Minas é com a Liberdade”.

No curso da difícil transição política que se cumpria naquele tempo, ele jamais se afastou, um instante sequer, desses princípios. No calor da vontade popular e com o país tomado pelo anseio por amplas liberdades, forjou, com a delicadeza de um artífice e a segurança das suas convicções, as importantes pontes políticas que nos permitiram finalmente fazer a grande travessia sem retrocessos, quando esgotaram-se as possibilidades do sonho comum, das Diretas-Já.

Não era a primeira vez que o país o convocava, adernado em graves crises. Foi assim em outros momentos da sua longa trajetória política, como parlamentar, ministro da Justiça no Governo Vargas, primeiro-ministro de Jango e aliado da primeira hora de JK. Mudavam as circunstâncias, mas não mudavam o brio e a coragem do democrata convicto.

Foi esse democrata que, de cabeça erguida, caminhando lado a lado com outros gigantes daqueles dias, entrou no Colégio Eleitoral, onde, refletindo o desejo da população nas ruas, foi eleito presidente da República. No seu discurso, falou ao coração do Brasil: “Esta foi a última eleição indireta do país”.

Ao recordar  a intensidade da  comoção daqueles dias, impossível não lembrar da postura adotada pelo PT que se recusou a votar em Tancredo e chegou a expulsar da legenda três parlamentares que, ouvindo as vozes das multidões e das próprias  consciências, não seguiram a determinação do partido, dando seus votos ao novo presidente.  Já há trinta anos,  sempre que precisa escolher entre os interesses do Brasil e a conveniência do partido, o PT escolhe o PT.

Aqueles foram dias especialmente difíceis. Silencioso como era quando se recolhia em sua São João Del Rei para refletir, Tancredo tinha a exata dimensão do que lhe reservara o destino. Por isso, jamais titubeou em aceitar o sacrifício que as circunstâncias lhe impunham e seguiu firme, determinado, até o ultimo momento, pensando primeiro no Brasil.

Quando levou ao extremo a sua preocupação com o país e sucumbiu à doença, deixou-nos importantes exemplos de desprendimento pessoal e patriotismo.

Um de seus traços mais marcantes,  a busca permanente pela construção de consensos, dava moldura à política como ele defendia e professava – a mais nobre e recompensadora das atividades humanas quando colocada a serviço do bem comum. Para ele, consenso não significava unanimidade nem fraqueza. Pelo contrário,  significava a coragem de abrir mão de interesses menores . Significava a  capacidade de não perder de vista o prioritário e  de encontrar caminhos que pudessem servir às grandes causas do país.

Ao lado de gigantes, como Ulysses, Montoro, Brizola, Teotônio, Arraes entre outros, Tancredo deixou-nos como maior legado o compromisso  com as liberdades democráticas, fim e caminho  da Nova República que ainda hoje sonhamos, podemos e merecemos ser.

Reitero, como brasileiro, o meu  profundo reconhecimento aos grandes líderes que, há 30 anos, não faltaram ao país.

Como neto, me debruço mais uma vez  sobre a saudade, na  certeza de que guardo comigo a mais preciosa de todas as heranças: seu exemplo.