Déficit em contas externas no 1º trimestre é o maior da história

As transações do Brasil com o exterior registraram um déficit de US$ 6,2 bilhões em março, contribuindo para o pior resultado no primeiro trimestre desde o início da série do Banco Central (BC), em 1947. No acumulado dos três primeiros meses do ano, o saldo negativo soma US$ 25,2 bilhões. Até então, o maior déficit nas contas externas havia sido registrado no primeiro trimestre de 2013, quando chegou a US$ 24,7 bilhões. Em março do ano passado, o saldo negativo foi de US$ 6,8 bilhões. Esses números, divulgados ontem pelo BC, consideram balança comercial, balança de serviços e transferências unilaterais, como doações e remessas de lucros.

O chefe do Departamento Econômico do BC, Tulio Maciel, disse que o resultado do primeiro trimestre se deve, em grande parte, a uma reação lenta da balança comercial. No mês passado, o Brasil exportou apenas US$ 112 milhões a mais do que importou. No acumulado do trimestre, há um déficit de US$ 6 bilhões.

E esse cenário não deve mudar a curto prazo. Estudo da consultoria americana Boston Consulting Group (BCG), também divulgado ontem, mostra que o custo da produção no Brasil aumentou nos últimos dez anos, tornando o país um dos mais caros entre os 25 maiores exportadores mundiais.

 

Custo de produção sobe no país

Aumentos significativos de salários, crescimento lento da produtividade, mudanças cambiais desfavoráveis e elevação nos custos com energia estão entre os fatores da elevação do custo produtivo do país. E isso reduz a competitividade, ainda mais em um cenário no qual concorrentes seguiram caminho contrário: o custo de produção no México já é inferior ao da China, enquanto nos Estados Unidos está entre 10% e 25% abaixo dos dez maiores exportadores do mundo, à exceção dos chineses.

— No Brasil, só tivemos aumento de custos, o que fez com o que o país se tornasse caro e ficasse excluído das cadeias globais de produção. Com isso deixamos de agregar valor ao produto exportado, exportando matéria-prima. E, ao fazer isso, no fundo estimulamos o concorrente a produzir lá fora e vender de volta para o Brasil — afirma José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).

Para o professor de economia da Fundação Dom Cabral Rodrigo Zeidan, o alto custo de produção no Brasil é reflexo da baixa produtividade do trabalho e do capital:

— Isso mostra que os gargalos continuam. É o custo Brasil, algo que só existe aqui. E isso não é um problema de curto prazo. Para mudar, são necessárias medidas de Estado.

Essa perda de competitividade, no entanto, não é exclusiva do Brasil. China, República Tcheca, Polônia e Rússia, tradicionalmente vistas como áreas de baixo custo, também estão sob pressão.

“Muitas empresas estão tomando decisões de investimento de produção com base em visões de décadas atrás que estão totalmente desatualizadas. Ainda veem a América do Norte e a Europa Ocidental como áreas de alto custo, e América Latina, Leste Europeu e a maior parte da Ásia — especialmente a China — como de baixo custo. Há países de baixo e alto custo produtivo em quase todas as regiões do mundo”, explica Harold L. Sirkin, sócio do BCG e um dos autores da análise.

E quando as empresas perceberem essa mudança no cenário produtivo mundial podem alterar suas escolhas. A greve que paralisa fábricas de Nike e Adidas na China desde o último dia 14 é um sinal de alerta para o país asiático, cuja vantagem de produção sobre os EUA encolheu, em uma década, para menos de 5%, segundo o BCG. Desde 2010, a Nike produz mais tênis no Vietnã do que na China.

Apesar do mau desempenho das contas externas, Maciel, do BC, observou que o déficit de março foi inferior ao de fevereiro deste ano e ao de março de 2013. E destacou que o déficit em transações correntes no acumulado em 12 meses, de US$ 81,5 bilhões, está em 3,64% do Produto Interno Bruto (PIB, soma de bens e serviços produzidos).

Com a balança comercial cada vez mais debilitada, o BC projeta um rombo de US$ 80 bilhões nas contas externas deste ano. Além do comércio exterior no vermelho, o Brasil tem apresentado déficit relevante na conta de serviços — que inclui, além das viagens internacionais, itens como pagamento de fretes e de aluguel de equipamentos.

 

Dólar alto, menos gasto no exterior

A conta de serviços foi deficitária em US$ 3,7 bilhões em março e US$ 10,4 bilhões no primeiro trimestre. Só o item viagens internacionais foi responsável por uma despesa líquida de US$ 1,3 bilhão no mês. Já os gastos dos turistas brasileiros no exterior ficaram em US$ 1,84 bilhão em março, queda de apenas 1,3%. As despesas de viajantes estrangeiros no Brasil, por sua vez, recuaram 10,7%, para US$ 535 milhões. No primeiro trimestre, as despesas de turistas brasileiros no exterior somaram US$ 5,87 bilhões, contra US$ 5,98 bilhões no mesmo período de 2013.

— O dólar ficou mais caro e isso desestimulou as viagens — disse Maciel.

Para o economista Bruno Lavieri, da Tendências Consultoria, a redução na entrada de recursos de estrangeiros pode estar relacionada a uma mudança na dinâmica de viagens devido ao carnaval tardio, em março, já que algumas pessoas costumam emendar fim de férias e carnaval.

Lavieri estima que o déficit das transações correntes chegará a 3,9% do PIB no fechamento do ano, acima dos 3,6% de 2013. Para ele, mais grave que o crescimento dessa cifra é o fato de os Investimentos Estrangeiros Diretos — que somaram US$ 4,9 bilhões em março, contra US$ 5,7 bilhões um ano antes — não garantirem mais o financiamento do déficit em conta corrente:

— O investidor não vê grandes fatores de atração para colocar seu dinheiro no país e acaba fazendo isso por questões financeiras, atrás de juros.

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Tempo de espera

Artigo do jornalista Celso Ming – Estadão – 24/01/2014

 

O Banco Central, presidido por Alexandre Tombini, não foi claro sobre os próximos passos da política de juros. A ata da última reunião do Copom, divulgada ontem, pareceu indicar que a hora é de esperar para ver.

É uma reação que aguarda novos dados. O primeiro deles é o comportamento da inflação. A evolução do IPCA em dezembro fora surpreendentemente alta e obrigou o Banco Central a puxar pelos juros mais do que pretendera até então.

As primeiras indicações de janeiro são parcialmente positivas. Ontem foi divulgada também a evolução do IPCA-15, que é o mesmo cálculo da inflação em 30 dias, com a diferença de que é medido do dia 15 de um mês ao dia 15 do mês seguinte. Não foi levado em conta para a redação da ata. Esse novo indicador apontou uma evolução bem mais baixa do que a de dezembro (de 0,75% em vez de 0,67%). Mas foi ainda mais baixa do que o 0,92% obtido em dezembro inteiro. Ou seja, a inflação voltou a desacelerar. A dúvida está em saber se a desaceleração é consistente. O alto índice de dispersão (mais de 75% dos itens da cesta de consumo acusaram elevação), o mais alto desde 2003, não dá muita esperança. É o que indica a forte resistência da alta de preços.

E há os puxadores de inflação, ainda não removidos: alta do dólar, aumento dos custos da mão de obra e indexação (reajustes automáticos de preços) extensa demais. Sobre o câmbio, o Banco Central avisa que já está trabalhando com uma cotação do dólar de R$ 2,40. Se é isso, pode ser mais. As contas externas deterioradas contribuem para empurrar a alta da moeda estrangeira.

O outro dado positivo aparentemente esperado pelo Banco Central é algum anúncio do governo federal de que a administração das contas públicas pode ser bem mais austera neste ano, mesmo tendo à frente as eleições de outubro.

No parágrafo 22 da ata está dito que a geração de superávits primários (ou seja, de sobra de arrecadação para pagamento da dívida) mais altos ajudaria a combater a inflação, a diminuir o custo de financiamento da dívida pública, etc. Traduzindo, isso parece certa pressão do Banco Central para que a política fiscal assuma uma parte maior da função do contra-ataque à inflação para que os juros básicos (Selic) não tenham de ser excessivamente acionados.

É possível que a presidente Dilma tire uma nova carta da manga para tentar melhorar o astral dos mercados e recuperar a confiança do setor privado. Até agora não há indicação disso.

Também importantes foram as indicações da ata de que não dá para esperar por uma melhora do crescimento econômico em 2014. O parágrafo 21 fala em “ritmo mais moderado do que é observado em anos recentes”. E, no entanto, em anos recentes, o crescimento do PIB foi muito fraco (2,7% em 2011, 1,0% em 2012 e, provavelmente, não mais do que 2,3% em 2013).

Enfim, não há firmeza de que a inflação esteja em retirada. O avanço em 12 meses pode recuar em janeiro e até mesmo em fevereiro, mas, se nada de importante se fizer para remover as causas, a alta de preços deve ser retomada mais à frente.

 

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“Estamos lenientes com a inflação”

Entrevista do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à revista Isto É Dinheiro, publicada no dia 27 de dezembro de 2013

No dia 17 de dezembro, antes de iniciar a entrevista à DINHEIRO, na sede do seu instituto, no centro de São Paulo, conferiu todos os compromissos da semana. “Vixe, quanta coisa”, disse, em tom de lamentação. FHC admite que sente falta de Brasília, mas não abre mão de morar e trabalhar na capital paulista. Falar sobre os 20 anos do Real é também uma oportunidade para relembrar erros e acertos do período em que governou o País, de 1995 a 2002.

“Se o Gustavo (Franco) tivesse feito aquela operação, teria dado certo, porque o mercado tinha medo dele”, afirma FHC, referindo-se à maxidesvalorização cambial de 1999, conduzida pelo economista Francisco Lopes, que durou poucos dias na presidência do Banco Central. Nesta entrevista, o tucano relata os bastidores do Plano Real, reclama do nível atual de inflação – “acaba erodindo o poder de compra das famílias” – e alerta que o Brasil precisa rever sua estratégia global. “Estamos isolados”, diz.
Confira a entrevista, que abre o Especial 20 anos do Real:
DINHEIRO – Qual foi o diferencial do Plano Real em relação aos planos anteriores?

Fernando Henrique Cardoso – O Plano Real aprendeu com os planos anteriores uma série de coisas. Uma delas, fundamental para o sucesso da estabilização, foi não ter dado aumento de salário, porque a estabilização em si gera ganhos de renda. Se há sobreposição de um ao outro, estoura o consumo. Como não há produção suficiente para atender à demanda, a inflação volta. Foi importante também a decisão que tomamos de não transformar um plano num susto, ou seja, anunciar o que iria ser feito. Isso foi fundamental para que a população entendesse e apoiasse as medidas.

DINHEIRO – Qual foi o papel da Unidade Real de Valor (URV) nessa transição?

Foi fundamental, pois a URV permitiu que a população entendesse o que era a inflação, visse que era possível ter uma moeda estável e escolhesse a moeda corrente ou a URV. Essa possibilidade de escolha evitou processos judiciais no futuro.

DINHEIRO – O STF, presidido pelo ministro Joaquim Barbosa, vai decidir em breve sobre as perdas de correntistas com os planos Cruzado, Bresser, Verão e Collor. Quando o sr. vê que o Plano Real está fora dessa lista, qual é o sentimento?

De que o plano foi correto. Aqueles planos todos tiveram um risco de contestação e se o Supremo der ganho de causa aos poupadores, arrebenta a Caixa Econômica e o Ban­­co do Brasil, de imediato.

DINHEIRO – Qual foi o grau de autonomia que o então presidente Itamar Franco deu ao sr. no Ministério da Fazenda?

Enorme. O Itamar foi uma pessoa que me deu apoio o tempo inteiro. Mesmo quando não estava tão entusiasmado com as ideias, ele confiou e me apoiou irrestritamente. Ele não era uma pessoa de conhecimentos técnicos, mas tinha sensibilidade política. No final, na hora de implementar a URV, houve um momento de tensão porque alguns ministros não tinham entendido bem a URV e tinham medo de que houvesse prejuízo aos salários, um tema ao qual o Itamar era sensível. Naquele momento, tive de ser mais duro com a equipe toda e o Itamar me apoiou.

DINHEIRO – Olhando o primeiro mandato, como o sr. avalia a política cambial? O sr. teria feito alguma coisa diferente?
No primeiro mandato, nós não tínhamos margem de manobra. Ainda havia dificuldades na área fiscal. Agora, olhando para trás, eu teria tentado ajustar o câmbio um pouco antes. Mas isso é engenharia de obra feita. Na hora que você está atuando, depende do que as pessoas estão fazendo, da sua equipe. Não basta querer, é preciso ver se a equipe está de acordo, tem de ver quem vai executar. E na época não havia na equipe essa mesma visão. Talvez tivesse sido possível ajustar o câmbio no final de 1996, porque foi um ano calmo, sem crises. Nós tentamos no final de 1995, logo no começo do meu governo, ajustar o câmbio. Mas teve a crise do México e os mercados estavam muito sensíveis. Então, a primeira tentativa não deu certo.

DINHEIRO – Por que só mudaram o câmbio em 1999?

Ficamos com medo de mexer no câmbio e estourar a inflação, porque estava tudo muito de­­sorganizado. Estávamos a­­­­penas começando a desindexar a economia e colocar ordem nos Estados e municípios. Quando teve a crise de 1999, eu queria mudar o câmbio e por isso mudei o presidente do Banco Central. Mas isso não era uma visão unânime. E quando nós fomos mexer, fizemos mal. Se o Gustavo tivesse feito aquela operação, teria dado certo, porque o mercado tinha medo dele. Eles acharam que o Chico Lopes ficou um pouco dubitativo. Eu queria mexer porque era óbvio que tinha de acertar o câmbio.

DINHEIRO – Por que não foi o Gustavo Franco que fez a operação?

Porque o Gustavo achava que a condição fiscal não permitia a desvalorização cambial. Então ele queria mexer muito lentamente, com desvalorização gradual. Ele não confiava na estrutura fiscal. Mas no final das contas, foi uma surpresa positiva quando em abril nós vimos que a inflação não disparou. Nós tínhamos desarticulado bastante as indexações. Naquele mo­­mento, o Itamar ameaçou uma moratória e causou comoção mundial. Para restabelecer a confiança no sistema fi­­nanceiro leva muitos anos, mas para perdê-la é rápido.

DINHEIRO – Qual foi o papel do Proer e do Proes?

Foi fundamental. Alguns bancos estavam em situação muito de­­licada quando pararam de ter lucro com o floating, os ganhos com a inflação. Aquilo deixou os bancos muito vulneráveis. Nós tínhamos de ter um instrumento que evitasse o que aconteceu no passado, quando o ministro da Fazenda telefonava para um banco e o obrigava a engolir o outro. E o Banco Central arrumava as contas depois. Nós queríamos fazer uma coisa transparente e o Proer foi isso, um mecanismo transparente. E mais: fizemos com que os acionistas dos bancos que estavam em dificuldade ficassem com seus bens bloqueados. E tivemos exemplos difíceis no mercado. Um dos bancos era de um ministro meu (o Bamerindus, de José Eduardo de Andrade Vieira). Mostramos que nós não estávamos brincando, era para valer (leia infográfico sobre os bancos). Depois o Banco Central passou a implementar as regras de Basileia, diminuindo a alavancagem e salvando o sistema financeiro brasileiro. Ao contrário do que o pessoal da oposição dizia, não eram os bancos que mandavam no Banco Central. Já o Proes foi muito importante porque os bancos estaduais eram bancos emissores (de moeda), que emitiam na forma de dívida dos Estados. Os tesouros se endividavam junto ao banco e não pagavam. Depois os Estados passaram a fazer dívida no mercado, a taxas de juros altíssimas, e nós tivemos de fazer a consolidação das dívidas. A oposição dizia que a dívida estava au­­mentando, mas estávamos apenas reconhecendo que existiam esqueletos e se­­gurando-os. Colocamos regras até a che­­­gada da Lei de Responsabilidade Fiscal.

DINHEIRO – Essa dívida de São Paulo, que está para ser renegociada, tem juros de 9% ao ano mais IGP-M. O sr. concorda que é um reajuste draconiano?

Se você olhar para o passado, a inflação era de 9% ao mês. O governo federal ficou com o ônus dessas dívidas todas e os Es­­tados passaram a nos pa­­­­gar a uma taxa que, para a época, era muito razoável. Agora, pode atualizar o indexador, mas com cuidado, pois não deveriam retroagir contratos. O mais grave disso aí é o seguinte: quando você dá mais folga aos Estados e municípios, o que eles vão fazer? Vão se endividar para poder fazer obras. É complicado, é uma gestão difícil. Se for investimento, é bom, mas às vezes vai para o inchaço da máquina.

DINHEIRO – De quem foi a ideia do tripé econômico?

Foi uma construção que partiu do Armínio Fraga e do Pedro Malan, no segundo mandato. Ao contrário do que as pessoas costumam dizer, o segundo mandato foi muito mais transformador do que o primeiro. Porque o tripé se consolidou no segundo mandato, como o câmbio flutuante, o sistema de metas de inflação e a Lei de Responsabilidade Fiscal. E todas as bolsas sociais, das quais depois o Lula se beneficiou, vêm do segundo mandato.

DINHEIRO – O sr. acha que a avaliação do seu segundo mandato é injusta?

É falta de conhecimento das pessoas. O segundo mandato foi em condições políticas mais difíceis, porque tinha a sucessão e o PFL (atual DEM) rompeu. O segundo mandato consolidou as conquistas do primeiro.

DINHEIRO – O sr. mencionou o ministro Pedro Malan. Por que ele ficou nos oito anos do seu mandato?

Porque era um exemplo da pessoa dedicada ao bem público, ele não arreda o pé. Não faz propaganda dele próprio, é correto, não falha. Ele tinha algo que é essencial, que é a respeitabilidade e a confiança. O Pedro pediu demissão em janeiro de 1999, e eu não aceitei.

DINHEIRO – O sr. sempre ressalta que no seu governo houve muitas crises externas. Foi azar?

O capitalismo tem ciclos. Quando fui eleito, em outubro de 1994, e veio a crise do México, eu pensei: “mala suerte”. Quan­­­­do o Lula assumiu, ain­­­da estava em má fase. Em 2004, empinou. Em 2009, piorou de novo. Agora a Dilma está numa fase baixa. Os governos têm a ilusão de que eles fazem e tudo acontece, mas não é bem assim. Há movimentos que não dependem só dos governos, mas das condições gerais do sistema econômico, do ciclo de acumulação do capital. Nunca ninguém pegou tanta crise junta como eu. Porque era um momento em que o sistema global estava se redefinindo com novas tecnologias, interconexão dos mercados financeiros, abertura de economias. Eu só não tive crise em dois anos: 1996 e 2000. Em 1995, tivemos uma em consequência da crise de 1994, no México. Em 1997, veio a crise da Ásia; em 1998, da Rússia; em 2001, dos Estados Unidos. E, em 2002, o Lula.

DINHEIRO – Os principais parceiros que o Brasil tinha no mundo naquele período ajudaram o País?

Eu não posso criticar o governo americano porque o Bill Clinton deu muito apoio. Mas não foi o único. Alemanha, Portugal, Espanha e Inglaterra nos deram apoio. Começamos a estreitar relações com a China, que ainda não era o que é hoje. O mundo não nos foi hostil, pelo contrário. Naquela época, o Brasil exercia a liderança com tranquilidade na América Latina. Tivemos problemas com a Argentina, mas em geral a coisa foi bem. Mantivemos relações com a Rússia. O termo BRICS surgiu em 1999 e a relação entre os BRICS foi muito positiva. E também com a África, inclusive Mandela esteve aqui. Tivemos dificuldades tópicas com o Canadá, por causa da Embraer, e com os Estados Unidos, quando abrimos processo na OMC no caso do algodão. Uma coisa é ter relações diplomáticas, outra coisa é ter relações comerciais cada um defende o seu. Ao entrar numa briga comercial, isso não deve ser estendido a uma briga política. Um país maduro não precisa dizer que é líder disso ou daquilo, ele é e pronto. Na América Latina, nós ajudamos a equilibrar bastante o Paraguai, o Equador, o Peru e a Venezuela. Melhoramos a nossa relação com o México. Foi o começo da expansão do Brasil no mundo.

DINHEIRO – O sr. tem uma proximidade com o presidente Bill Clinton. Não dava para ter esperado um pouco mais dos Estados Unidos?

Naquela época, eles nos apoiaram quando houve dificuldades. Não há amigos em relações comerciais. Você tem, às vezes, amigos políticos quando o mundo está dividido. No nosso caso, a Guerra Fria já tinha acabado. Então não havia inimigos políticos.

DINHEIRO – E os nossos vizinhos? O Mercosul se desenvolveu como o sr. imaginava?

Não. O Mercosul não deu os passos para avançar mais. Não ficou nem numa zona de comércio e nem houve propriamente uma integração. Isso agora causa problemas, porque ficamos muito amarrados ao Mercosul e não desenvolvemos relações bilaterais.

DINHEIRO – Olhando para o futuro, qual tema mereceria a mesma atenção que o Plano Real?

Acho que temos de rever a nossa visão estratégica. Depois do governo Lula, ficou a sensação de que o novo mundo que se formaria seria um mundo de declínio dos Estados Unidos, principalmente, e de emergência da China, dos países árabes e do Terceiro Mundo. Quando veio a crise, essa crença se fortaleceu. Mas estamos saindo da crise e o que aconteceu é outra coisa. Então, nós temos de nos ajustar, pois estamos isolados. Temos de voltar a ter uma posição mais ativa no mundo.

DINHEIRO – Apesar do Plano Real, o Brasil ainda cresce pouco?

Se você olhar com objetividade, o grau de crescimento econômico do Brasil é baixo. Não me refiro a este governo, estou generalizando. Se você olhar nos últimos 30, 20 ou 10 anos, a taxa de crescimento nossa chega a 2,5% e 3%, na média. É pouco. A produtividade está decaindo. E não é a produtividade na fábrica, é a produtividade global, é o custo Brasil. Alguma coisa está errada. Os governos que me sucederam acreditaram muito que poderiam continuar crescendo com base na continuidade de investimento externo e no consumo das famílias. Isso é positivo, mas tem limites. A taxa de poupança nunca aumentou. Com poupança de 17%, 18% do PIB, você não cresce mais do que 2,5% do PIB. Esse problema não foi enfrentado. Para enfrentá-lo, nós temos necessidade de investir. Essa infraestrutura parou porque pararam as concessões. Agora que voltou, pois havia um preconceito ideológico. Agora o governo faz e diz que não está fazendo privatização. O que foi feito com a telefonia é exatamente o que foi feito no leilão de Libra ou no leilão de aeroportos. O governo dá a concessão durante um certo período e depois tudo volta ao Estado. Temos de dar mais energia às agências reguladoras e dispôr de projetos efetivos de investimentos. Sem falar em questões difíceis como educação e saúde.

DINHEIRO – A inflação tem ficado acima do centro da meta, de 4,5%. Em algum momento devemos ambi­cionar reduzi-la?

Eu acho que precisaria porque o mundo mudou. Antigamente a taxa de inflação era uma variável não tão importante quanto é hoje. Mas atualmente, por causa da competitividade, a média de inflação no mundo é 2%. Nós estamos lenientes com a inflação. E isso acaba erodindo o poder de compra das famílias. Quando começa a erodir, elas se endividam. Para haver a expansão do consumo, houve um aumento enorme do crédito. Isso também tem limite. O que aconteceu? O crédito privado refluiu e os bancos decidiram ficar com os melhores pagadores. O setor público não refluiu, mas vai ficar com pagadores discutíveis, que têm como garantia final o Tesouro. Se você olhar a Caixa Econômica, saberá que daqui um tempo o Tesouro vai ter de socorrê-la. O BNDES, presidido por Luciano Coutinho, já está sendo socorrido pelo Tesouro. Isso tem limite. Para ter programa de longo prazo e aumentar a taxa de investimento, tem de elevar a pou­­pança interna e externa, tem de fazer mais investimento e não pode confiar que o crédito é elástico até o infinito, porque ele não é.

DINHEIRO – O governo Dilma já sinalizou que o BNDES vai voltar a ter um papel um pouco menor. É correto, então? 

Sim, o governo se assustou porque há a ameaça de um downgrade na sua nota de risco. Eles sabem o que isso significa. Mas, na prática, ainda não estão fazendo nada, por enquanto é só palavra.

DINHEIRO – Em 2009, o Brasil foi colocado pela The Economist como queridinho e este ano o Cristo Redentor está desgovernado. Qual análise está correta?

As duas são exageradas. Nem foi tão bem, nem vai tão mal.

DINHEIRO – Por que a visão estrangeira é tão equivocada?

É sempre assim. Os mercados exageram. A visão estrangeira é a visão do mercado financeiro, e o mercado tende a exagerar.

DINHEIRO – Há alguma relação entre a falta de mão de obra qualificada e os problemas na educação? Qual é o caminho?

Tem a ver, sim. Acho que o presidente Lula, talvez pela sua trajetória pessoal, resolveu colocar ênfase nas universidades. O problema central do Brasil não são as universidades. É o ensino fundamental e o ensino técnico. Foram criadas muitas universidades, sabe lá Deus de que qualidade. Por outro lado, houve perda de estímulo na educação fundamental. E aí tem uma coisa da visão corporativa sindical de querer que os salários sejam homogêneos, que não haja diferenciação pela produtividade. O professor que vai melhor ganha mais, como tentamos fazer em âmbito federal. Algo de meritocracia tem de haver. É óbvio que tem de haver uma base salarial boa, mas depois tem de premiar quem produz mais intelectualmente e se dedica mais aos alunos.

DINHEIRO – Qual foi o grande acerto do Plano Real?

Foi um plano que explicou ao País o que ia fazer e fez. Isso não foi um truque, foi uma coisa verdadeira. Foi um plano que deu certo, a moeda está aí até hoje. Se você pegar o que houve no pas­­sado, o País é outro após o Real. Não teria possibilidade de ter o avanço que houve sem a estabilização. Junto com a estabilização, nós aumentamos o salário mínimo, sempre. O aumento de salário mínimo real vem desde 1993. Isso melhorou o bem-estar da sociedade.

DINHEIRO – Vinte anos depois, o sr. sente orgulho do Real?

Creio que a palavra orgulho é muito forte. Fiz o que tinha que fazer. Arrisquei o que tinha que arriscar. Nunca me preocupei com popularidade. Sempre fiz o que achava que era bom para o Brasil. Podia estar errado, mas a minha consciência estava tranquila. Hoje todo mundo fala de estabilidade econômica. Antigamente, os que me criticavam diziam que estabilidade era só para o capital, não era para o trabalho. Hoje eles aprenderam. Isso incorporou uma preocupação comum no Brasil de que não se pode deixar a inflação ter o ímpeto que ela teve. Nós estamos reclamando da inflação hoje, mas está entre 5% e 6% ao ano. Naquele tempo era de 20%, 30% ao mês, uma barbaridade. Aquilo foi a principal fonte de manutenção da po­­breza e de aumento dela no período anterior ao Real.

 

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