Artigo do secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame – Folha de S. Paulo – 12/02/2014
Em setembro do ano passado, pedi a um grupo de especialistas que discutisse e elaborasse um projeto de lei que desse conta dos conflitos que assistíamos nas ruas. Um grupo que estudasse uma proposta que não fosse contaminada por viés ideológico ou pelas pressões do cotidiano.
Entendo que manifestações populares são movimentos legítimos, que não devem ser criminalizadas na sua essência. Mas acordos formais de convivência precisam ser respeitados e temidos para diminuir os riscos. As chances de um rojão matar uma pessoa durante um protesto seriam muito menores se as regras estivessem bem definidas na lei. Infelizmente, não estão.
Hoje o maior desafio das polícias é o de trabalhar sem essas guias, sair para as ruas para trabalhar num contexto cinzento, em que a cada golpe de cassetete sua legitimidade é questionada. O vandalismo a que assistimos hoje é classificado nos códigos como crime de baixo potencial ofensivo. Em tese, quebrar uma janela não deveria mesmo engendrar mais do que uma multa.
Mas quando pequenos grupos organizados promovem ou incitam quebra-quebra no horário de pico na principal estação de trem de uma metrópole, o potencial passa a ser explosivo e de consequências imprevisíveis. A lei atual não permite a leitura dessas nuances, dos novos contextos. O rapaz que levou o artefato que atingiu o cinegrafista no Rio foi preso duas vezes antes de colaborar com o trágico homicídio. Homicídio que vai mudar para sempre inclusive a vida dele.
A Constituição de 1988 dá indicações, mas não tipifica os crimes derivados dessas manifestações. A ausência de detalhamento tem seu aspecto político também. A dificuldade de debater o tema de forma mais técnica ainda é reflexo da memória recente do Estado totalizante de 50 anos atrás. Mas é necessário fazer uma ressalva e desmistificar de vez o papel do controle e da repressão no Estado moderno: polícia no século 21 no Brasil não trabalha mais para servir ao autoritarismo e muito menos ao revanchismo. A ditadura já acabou e polícia hoje tem de ser pensada como mais um instrumento da democracia.
Sob essa lógica, levei minha proposta ao ministro da Justiça em fins de novembro. Brasília continua discutindo o assunto. Vou levar ao Senado as mesmas regras: fáceis de entender e de pactuar. Do lado da prevenção, destacaria três pontos.
1. Aos participantes é vedado o anonimato, o uso de máscaras que atrapalha o trabalho de identificação. Sem máscaras provavelmente não veríamos artefatos nas ruas.
2. Quem organiza uma manifestação precisa comunicar previamente (um simples e-mail) não só à polícia, mas também à autoridade de trânsito. Ao avisar, o cidadão ou o grupo torna-se corresponsável por atos não combinados.
3. Ninguém deve usar ou portar qualquer objeto que venha a causar lesão ou dano a terceiros. Fugir dessas regras levará à detenção imediatamente, para registro. Em caso de reincidência nas condutas, o juiz aplica uma multa e o infrator fica no mínimo 120 dias longe de qualquer evento público.
Os casos de aumento de punição são mais detalhados e variam de acordo com a gravidade. Eles dizem respeito às consequências dos atos. Incitação ao vandalismo pode gerar penas que variam de seis meses a oito anos de prisão. Uma ação que resulta em morte soma mais 12 anos na condenação.
Essas são propostas para serem debatidas, votadas e transformadas em lei. Temos pressa, há pessoas morrendo. Seriam acordos estabelecidos em lei, conhecidos por todos e que não carregam nenhum indício de autoritarismo.
Há países com democracias muito mais consolidadas que a nossa e que proíbem manifestações em lugares críticos. No Brasil, isso seria tachado de absurdo e de exagero. Aqui não quero tratar da regra ideal, somente do que é possível.
Leia também aqui.