Senhoras e senhores Senadores,
Retorno hoje à Tribuna desta Casa como senador preocupado com as constantes ameaças à nossa já frágil Federação.
É desta posição que desejo dirigir-me hoje a cada um dos meus pares.
Muito além dos interesses de grupos, das injunções partidárias e da orientação ideológica, aqui encarno a honrosa tarefa que recebemos nas urnas, da representação dos estados federados.
É em nome deles que retorno à cobrança de uma solução urgentíssima para a dívida contratada pelos Estados junto à União, sob pena de um verdadeiro dominó de falências e a morte anunciada e definitiva do federalismo nacional.
Antes que o tradicional embate entre o governismo e as oposições recomece, é meu dever registrar as inúmeras manifestações de congressistas de praticamente todos os partidos, inclusive da base do governo, em apoio à busca de uma saída imediata para o problema.
Acredito que poucos temas nos permitiriam as condições básicas necessárias para sonharmos com um consenso político, coisa rara nesta Casa.
Trata-se de resgatar condições mínimas de governabilidade dos nossos estados, e não de celebrar a vitória sobre o adversário, ou impor a derrota a quem quer que seja.
Prevalece, nesta matéria, o interesse nacional sobre o interesse político circunstancial ou meramente partidário.
Como se sabe, no fim da década de 1990, a União assumiu a dívida dos estados, como parte de um amplo programa de reformas econômicas em curso naquele momento, que teve como marcos importantes o Plano Real e o fim da inflação; a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Programa Nacional de Privatizações.
O objetivo do governo federal, à época, era levar a frente o necessário processo de saneamento financeiro dos estados, que exigiu a desestatização de empresas e bancos estaduais que eram altamente deficitários e, com isso, garantiu um drástico aumento da responsabilidade fiscal.
O mecanismo adotado foi importante e era o mais recomendável naquela conjuntura econômica.
Com ele, salvamos estados da bancarrota e elevamos para um outro patamar a nossa governança fiscal.
O tempo passou e as circunstâncias hoje são outras. O que era a melhor solução para o problema naquele instante já não nos serve mais. Pelo contrário, tornou-se perversa para o conjunto dos estados.
E aqui, apenas a título de exemplo, peço licença para citar a realidade do meu estado, Minas Gerais. Podia citar qualquer outro, mas cito o estado que governei por oito anos.
Nossa dívida em dezembro de 1998 era de R$ 15 bilhões. Desde então, Minas já pagou a fabulosa soma de R$ 21,5 bilhões, mas, inacreditavelmente, deve ainda hoje espantosos R$ 59 bilhões.
Como disse recentemente, nesta tribuna, o senador Luiz Henrique, os Estados pagaram até dezembro de 2010 R$ 135 bilhões, com todos os sacrifícios aos investimentos em infraestrutura e em programas sociais, e o saldo devedor ainda alcança, com juros e correção monetária, R$ 350 bilhões.
Ou seja, mesmo depois de uma década de pagamentos substantivos por parte dos estados, o estoque mais que triplicou!
Aqui, repito também mais uma lúcida equação que ouvi do senador Lindbergh Farias: é como se a União, com a manutenção deste modelo, buscasse auferir lucro com a penúria alheia.
Todos sabemos, senhoras e senhores senadores, que não há outro caminho senão o da renegociação.
Alguns estados pleiteiam que o indexador dessa dívida seja substituído e passe a ser o IPCA, o índice oficial de inflação, e não mais o IGP-DI.
Àqueles que se preocupam que a troca de indexadores possa ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal, respondo, como um daqueles que mais lutou pela sua aprovação na Câmara dos Deputados, que a lei que trata da rolagem da dívida já previa a troca de indexadores. Ou seja, não há desrespeito àquela fundamental legislação para a gestão pública brasileira.
Outros entendem que a mudança de indexador pode não ser o caminho acertado. Se há divergência sobre este ponto, há um consenso de que o governo federal precisa sinalizar, de forma inequívoca e urgente, para uma renegociação que reduza o percentual de comprometimento das receitas dos estados com o pagamento dos serviços da dívida.
Hoje, em Minas, por exemplo, 13 por cento da Receita Corrente Líquida estão comprometidos com juros e amortização. Em outros estados, essa marca chega a alcançar até 15 por cento.
Sei que podemos ouvir dos especialistas uma série de argumentos que justificariam o crescimento do saldo devedor como um reflexo do teto fixado para pagamento dos estados.
No entanto, chamo a atenção para o fato de que o acesso da população aos serviços públicos essenciais, que demandam capacidade de investimentos dos estados e municípios, não pode depender de mera matemática financeira.
Senhoras e senhores Senadores,
Há ainda outras formas de examinar o quadro atual, lendo nele os grandes desafios existentes, mas também as oportunidades que decorrerão do seu enfrentamento.
Como todos sabem, o baixíssimo nível de poupança doméstica é um dos fatores que justificam o reduzido investimento público no Brasil.
Continuamos abaixo do nível de investimento registrado em economias equivalentes e até mais modestas que a nossa.
E tenho certeza que ninguém questiona este vetor como fundamental à instalação de um novo ciclo de crescimento, após a estagnação recente, para que não voltemos a repetir o crescimento pífio registrado no último ano.
Ora, por que não estimular outras frentes de ação capazes de impulsionar a roda da economia?
Por que não podemos nos permitir um vigoroso processo de descentralização, capaz de estimular estados e municípios a também fazerem investimentos, no lugar de engrossarem a fila dos pedintes?
O mecanismo óbvio é a renegociação da dívida, tenha ela o formato que tiver, desde que conduza a superação das dificuldades que afetam as finanças públicas, repito, de todos os estados brasileiros.
Significa libertar os estados e municípios deste lugar de pagadores escravizados por um sistema de cobrança absolutamente draconiano, para reconhecê-los como novos e importantes parceiros do processo de desenvolvimento nacional.
Este seria, na prática, um primeiro passo para começarmos a inverter a dramática dinâmica de fragilização do pacto federativo.
Acredito que é razoável admitir, senhores senadores, que este não é um problema novo, assim como se faz necessário pontuar que ele se agravou como nunca antes na história deste país.
Soma-se a ele o crescente e perigoso fenômeno da transferência de responsabilidades para estados e municípios, em contraposição ao distanciamento da união de grandes problemas nacionais.
Lembro aqui que continuam no limbo da falta de vontade política as iniciativas propostas para recompor perdas dos entes federados no resultado fiscal.
Eu mesmo assinei duas propostas nesta direção – um projeto de lei e uma emenda à Constituição – que poucos passos deram no Congresso Nacional.
Cito aqui a regulamentação da Emenda 29, quando a União se eximiu, a ferro e fogo, de assumir limite mínimo de investimentos na área de saúde pública, impondo-os, no entanto, e sem nenhum constrangimento, a estados e municípios.
Lembro que benemerências como as diversas isenções fiscais têm incidido, sistematicamente, e não por mera coincidência, sobre parcela de ganho fiscal compartilhado por estados e municípios, e nunca sobre o grande montante arrecadado exclusivamente ao governo central.
Em recente artigo, exemplifiquei o cenário que vivemos hoje com a contradição existente entre as taxas que corrigem as dívidas dos estados – nas alturas – e as taxas generosamente subsidiadas pelo BNDES, para financiar a iniciativa privada.
A flagrante contradição do governo é que ele cobra empréstimos de empresas a taxas que giram em torno de metade ou até mesmo de um terço daquelas que exige dos outros governos estaduais e municipais.
Em que federação do mundo, em que momento da história, um governo empresta para empresas privadas com condições muito mais vantajosas do que aquelas que exige dos demais governos?
Ora, se é importante baratear o financiamento do processo de crescimento nacional – especialmente se esta for uma regra para todos – por que penalizar o investimento público, sob cuja guarda permanecem serviços essenciais como saúde, educação e segurança?
E mais: como é possível levar adiante este modelo, apoiando e estimulando novas demandas e novos ônus financeiros sobre estados e municípios?
É preciso haver o mínimo de responsabilidade gerencial.
Por que não debater, portanto, ideias interessantes, como as das Assembleias Legislativas de diferentes estados que levantaram a possibilidade de os estados “carimbarem” os eventuais ganhos advindos do processo de renegociação, orientando-os para áreas que precisam de mais recursos, como, por exemplo, a saúde pública?
Ou para um inédito e motivador investimento na qualidade da educação brasileira?
Outra ideia que devia ser objeto da nossa análise é a flexibilização dos pagamentos mensais, de modo a converter parte deles em investimentos em infraestrutura e em projetos prioritários de estados e municípios.
Na prática, os Estados continuariam pagando o mesmo, porém, parcela da receita “voltaria” para os estados aplicarem em investimentos fixos, previamente acordados com o governo federal.
Criaríamos, assim, uma nova sinergia no processo de desenvolvimento do país.
Não faltam boas ideias ao debate.
Estas são, como disse no princípio, diferentes maneiras de transformar um problema grave em saídas para outros desafios até aqui sem resposta.
Acredito que é hora do governo se posicionar, sob pena de assistir impassível a um dramático processo de judicialização da crise de governança, imposta por um sistema que todos nós entendemos como abusivo e já indefensável até mesmo pelos aliados do poder.
Ao contrário da luta pelo poder e pelo mando político, o governo federal tem a oportunidade de oferecer ao país uma inédita e inequívoca demonstração de um outro tipo de protagonismo: a solidariedade política.
A responsabilidade administrativa.
O espírito republicano e a visão nacional.
Já disse e repito: continuamos órfãos de um projeto de país. Não nos basta apenas um projeto de poder e de governo.
Senhoras e senhores,
Encerro fazendo um sincero apelo a cada um dos senadores.
É preciso que esta Casa – a Câmara Alta – não se curve às circunstâncias políticas.
Vários temas correlatos a este estarão de debate. A discussão dos novos critérios para o FPE, a distribuição dos royalties, portanto, temas que deveriam convergir para uma única e profunda discussão.
É preciso que esta Casa não abra mão de suas prerrogativas.
É preciso que esta Casa exercite, em plenitude, com autonomia e altivez, a guarda dos princípios federativos que estão sob sua direta e inalienável responsabilidade.
Não há questão mais substantiva a ser discutida hoje no Brasil. E, nesse sentido, pretendo ao lado de outros senadores e senadoras aprofundar esse debate porque, acredito, é exatamente aqui que ele deve ocorrer.
Nossa responsabilidade é, acima de qualquer outra, preservar a Federação no Brasil.
Muito obrigado.
Aécio Neves – Brasília – 07/03/2012